Entretanto, no cotidiano de interlocução do Serviço Social com os Conselhos Tutelares, registram-se observações sobre entraves a serem enfrentados, seja pela própria diferenciação de papéis, ou pelas circunstâncias dos âmbitos institucionais respectivos, o que exige a aproximação e reconhecimento sistemático sobre essa complexidade.
Tal contradição, coloca-se enquanto limitação do espaço de parceria necessário para a prestação da assistência de qualidade, sobretudo, considerando a conduta ética esperada entre profissionais e conselheiros e entre estes e os usuários.
Cabe ressaltar que, a determinação de novos espaços de decisões compartilhadas, a partir da instalação dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares, provoca tensão com os mandatos executivos e legislativos, estes marcados pela cultura política “clientelista”, sobretudo, nos municípios do interior, nos quais a participação tende a ser tutelada por prefeitos e vereadores. Assim, a natureza de independência de tais espaços, considerando-se suas atribuições de controle, fiscalização e aplicação de medidas, potencialmente, colidem com velhas práticas políticas.
Sobre o tratamento de dados de atendimento, 75% afirmam não fazer nenhuma estatística. Os 25% que fazem a estatística, não realizam reconhecimento epidemiológico desta população.
Os que atuam no setor de emergência estabelecem o contato inicial com tal demanda, com as características peculiares de tal condição, na maioria dos casos, de forma efêmera, além de serem absorvidas por demais demandas do setor.
As duas que atuam na enfermaria de Pediatria dão seguimento aos atendimentos realizados no setor de emergência, já que este é a principal porta de entrada. Atendem, especificamente, crianças. Poucos casos recebem atendimento inicial. É possível o estabelecimento de maior vínculo com os usuários e, conseqüentemente, o aprofundamento sobre o conhecimento da dinâmica que envolve a demanda.
As assistentes sociais que atuam nas demais enfermarias, convivem apenas esporadicamente com tais situações, restringindo-se aos adolescentes. Geralmente, o contato com os Conselhos Tutelares, quando necessário, são para seguimento de situações já notificadas no setor de emergência.
Conforme o quadro exposto, constata-se que 64% da equipe estabelecem contatos regulares com os Conselhos Tutelares, enquanto que 41% mantém apenas contatos eventuais.
4.1 - Principais situações de maus-tratos vivenciadas no cotidiano profissional.
As referências sobre as principais situações de maus-tratos vivenciadas no cotidiano profissional foram bastante diversificadas, não se limitando às formas mais acentuadas de violência, o que denota o amadurecimento da equipe para publicizar questões que vão além dos sintomas aparentes e imediatos da demanda mais agravada, buscando atuar também sobre aspectos voltados para prevenção primária da violência.
A forma de maus-tratos mais citada foi a “negligência”, em suas várias manifestações (65%); seguida da “violência urbana” (59%), a qual atinge, particularmente, aos adolescentes; “abuso sexual” (59%); “abuso físico” (53%); e “auto-agressão” (23%).
Englobada nas várias expressões de “negligência”, a “falta de Registro de nascimento” obteve 64% das citações dos assistentes sociais, representando o esforço atual da equipe, com êxitos significativos, em viabilizar o documento antes da alta hospitalar. Outras formas de negligência citadas foram: falta de higiene (53%); falta de vínculo com a rede de ensino (35,3%); quedas (29,4%); acidentes de trânsito (29,4%); acidentes domésticos (23,5%); situação de rua (23,5%); desnutrição (23,5%); cartão de vacinação desatualizado ou inexistente (23,5%); falta de puericultura ou outra forma de assistência médica (23,5%); desmame precoce (6%); trabalho infantil (6%) e alta à revelia (6%). Considerando-se a associação existente entre as várias formas de maus-tratos, conforme indica a literatura específica3, a observação e atuação dos profissionais sobre tal forma de maus-tratos podem contribuir para a identificação precoce das situações de risco social.
4.2 - Formas de atuação e procedimentos adotados.
As citações dos assistentes sociais referentes às formas de atuação e procedimentos adotados durante o atendimento às situações de maus-tratos contra crianças e adolescentes revelam algumas contradições perpassadas na forma pela qual se organiza o processo de trabalho do Serviço Social no HEGV. Considerando-se que as respostas correspondem ao ponto de vista imediato e empírico, observa-se que a maioria dos assistentes social destaca sua atuação pelas diretrizes estabelecidas nas rotinas instituídas.
Assim, 76,5% afirmam que emitem a Notificação Compulsória regularmente ou eventualmente, enquanto que 23,5 não necessitam de tal procedimento em suas ações cotidianas. 65% enfatizam a necessidade dos encaminhamentos aos recursos institucionais em seus atendimentos, e 47% ressaltam as ações de educação e saúde, bem como a importância do estabelecimento do contato prévio ou de seguimento com os Conselhos Tutelares. 35,3% lembram de fazer referência à relevância do esclarecimento aos usuários sobre o papel da notificação e do Conselho Tutelar. 29,4% referem-se à elaboração de sumários sociais complementares à notificação enquanto prática cotidiana. 23,5% registram a preocupação em encaminhar os responsáveis ao Conselho Tutelar no ato da notificação. Apenas 18% destacam a ação do acolhimento aos usuários e o mesmo percentual preocupa-se em realizar perfil sócio-familiar. 12% referem-se à importância de emitirem parecer e só 6% ressaltam o papel da ação interdisciplinar.
Percebe-se que poucos profissionais fizeram referências às atividades de caráter educativas, informativas, acolhedor e assistencial. Tal contradição pode ser decorrente de fatores diversos, os quais ultrapassam o objetivo do presente trabalho. Entretanto, acredita-se que a atual cultura institucional hegemônica traduz-se em rotinas institucionais esvaziantes do sentido ampliado de saúde, tal qual possibilitasse a assistência para além do caráter curativo e emergencial das enfermidades, e, conseqüentemente, favorecendo as ações de promoção da saúde.
Assim, o profissional de Serviço Social, como diria Vasconcelos (2002), acaba sendo envolvido em ações paliativas, imediatas e de grande sobrecarga, as quais, nem sempre, o competem, mas que o subordinam mais ao atendimento das demandas institucionais e de outros segmentos profissionais, em detrimento da intervenção de maior impacto sócio-educativo. Evidência mais constante de tal perspectiva, pode ser localizada na institucionalização da atribuição, quase exclusiva, de notificação compulsória de maus-tratos aos assistentes sociais.
4.3 - Principais dificuldades vivenciadas junto aos Conselhos Tutelares.
A natureza dos diversos tipos de intervenção do Serviço Social, resultantes das várias formas de inserção dos assistentes sociais na equipe (emergência dia/noite, enfermaria de Pediatria e demais enfermarias), definirá também a forma de relacionamento com os Conselhos Tutelares, podendo ser eventuais e voltadas para soluções de questões imediatas, ou constantes, pretendendo inclusive participar do encaminhamento efetivo das situações de maus-tratos notificadas.
A equipe de Serviço Social, de modo geral, localiza os entraves vivenciados junto aos Conselhos Tutelares em aspectos bastante pulverizados, em virtude das formas diferenciadas de intervenção Assim, verifica-se que a maioria da equipe localizou a principal dificuldade no acesso aos Conselhos Tutelares fora do horário comercial (35,3%), experiência essa, característica dos plantonistas de final de semana e do horário noturno. 29,4% reclamam da falta de retorno dos casos encaminhados, dado encontrado no posicionamento de assistentes sociais de vários setores. O mesmo percentual diz a respeito à falta de postura ética dos conselheiros para com os profissionais. 23,5% sinalizam a relação unilateral dos conselheiros em relação aos casos atendidos. Destaca-se a citação de 17,6% sobre a falta de definição nas orientações dos conselheiros, bem como da ausência de preparo técnico. Um percentual menor (11,8%) de assistentes sociais referiu-se a desorganização no processo de trabalho dos Conselhos, incluindo a demora no encaminhamento dos casos. O mesmo percentual ressaltou a falta de infra-estrutura (fax, viatura, linha telefônica, etc.). A minoria dos assistentes sociais (6%) enfatizou o abuso de poder; a omissão de alguns conselheiros sobre suas atribuições e a falta de reconhecimento pelos Conselhos sobre as características das diversas unidades.
A definição da equipe de Serviço Social sobre os entraves vivenciados junto aos Conselhos Tutelares evidencia a falta de sintonia entre ambos os segmentos, os quais ignoram as contradições dos respectivos universos institucionais. Tal limitação restringe também a necessária parceria desses segmentos na defesa e na promoção dos direitos da criança e do adolescente, já que a própria legislação específica ressalta a necessária ação articulada entre os vários segmentos da sociedade civil.
4.4 - Conselhos Tutelares com os quais encontra maior dificuldade de relacionamento.
O Conselho Tutelar de Ramos, por abranger os bairros dos quais provém a maioria dos usuários do HEGV, é aquele com o qual a equipe mantém mais contato, sendo apontado também como aquele de maior dificuldade de relacionamento (64%), seguido pelo Conselho Tutelar de Madureira (47%) e pelo Conselho Tutelar de Duque de Caxias (23%). Apenas 23% dos membros da equipe afirmam não terem tido qualquer dificuldade na relação com os Conselhos Tutelares. Cabe considerar nos percentuais referidos que alguns profissionais citaram mais de um Conselho.
4.5 - Sugestões para melhoria na relação com os Conselhos Tutelares:
O item referente às sugestões para a melhoria na relação com os Conselhos Tutelares foi o que revela maior convergência entre os assistentes sociais, independentemente da forma de inserção na equipe. Assim, 70% defendem maior intercâmbio dos Conselhos Tutelares com profissionais de saúde; 40% defendem a necessidade de encontros ou seminários regulares; 30% dos assistentes sociais sugerem a capacitação sistemática dos conselheiros; 17% propõem um relatório mensal emitido pelos Conselhos Tutelares dos casos encaminhados pelas unidades de saúde; 10% destacam a necessidade de atualização da lista de telefones celulares; relação de novos conselhos criados, 6% esperam melhor orientação sobre os casos nos quais a orientação se faz necessário, 6% sugerem que os celulares estejam permanentemente ligados, 6% esperam que haja maior esclarecimento quanto às características de cada unidade, 6% acreditam que seja necessário maior capacitação dos demais profissionais de saúde e 6% defendem que haja maior presença dos conselheiros na unidade.
A concentração de indicação da necessidade de maior intercâmbio com os Conselhos Tutelares (70%) pode estar associada à motivação para a adesão da equipe à proposta de realização do levantamento junto aos Conselhos Tutelares e do Seminário já referido na introdução deste trabalho. Cabe ressaltar que a maioria da equipe visitou os Conselhos pelos seus meios próprios e, alguns, durante o seu horário de folga.
5 – Considerações finais.
A oportunidade de aproximação com os Conselhos Tutelares pode favorecer a constatação de que os avanços jurídicos conquistados a partir da promulgação do ECA tornam-se incompatíveis com a atual condição de funcionamento desses importantes espaços na busca de aplicação da lei.
O descomprometimento do poder público, em particular dos Prefeitos, com o aparelhamento adequado dos Conselhos; manutenção dos equipamentos; melhor remuneração dos conselheiros; bem como com a ampliação do número de Conselhos existentes, fica bastante evidenciado no levantamento realizado .A falta de vontade política e a tendência ao tratamento da política pública enquanto mérito do executivo ou legislativo, nos moldes da cultura política tradicional, é a tendência que se verifica, com poucas exceções.
A inexistência das Redes de Proteção Social nos moldes proposto pelo Ministério da Saúde4 na maioria dos municípios, inclusive no do Rio de Janeiro, é o retrato da ausência de políticas públicas, em particular, das voltadas para o segmento infanto-juvenil.
Por outro lado, cabe à sociedade civil reassumir o seu protagonismo na defesa de políticas públicas inclusivas, mobilizando-se e participando dos espaços políticos conquistados a fim de pressionar o poder público ao cumprimento de seu papel.
A acentuação dos níveis de exclusão social e, conseqüentemente, o crescimento da violência, as quais atingem prioritariamente as crianças e adolescentes, configuram a urgência no enfrentamento dos dilemas apresentados.
Considerando-se a violência enquanto relevante questão de saúde pública, e as repercussões da mesma para o desenvolvimento físico e emocional do frágil segmento de crianças e adolescente, acredita-se que caiba aos serviços de saúde o estabelecimento de uma política institucional mais abrangente, articulada, especializada , com ênfase nas ações de prevenção e promoção da saúde.
O Serviço Social no Hospital Estadual Getúlio Vargas espera estar fazendo a sua parte na busca de parceria com os Conselhos Tutelares, a exemplo da organização dos levantamentos explicitados e do “I Seminário sobre a atuação do Serviço Social junto aos Conselhos Tutelares da Região Metropolitana” em 25.05.2004. O evento contou com a presença de conselheiros e técnicos representando 09 Conselhos Tutelares, além de profissionais e estagiários de diversas áreas atuando no HEGV. Consideramos limitado o número de Conselhos presentes, mas, certamente, um passo significativo nesta caminhada.
6– Referências bibliográficas.
BAZÍLIO, Luiz C. et alii. Infância, educação e direitos humanos.São Paulo:Cortez, 2003.
BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei federal 8069 de 13.07.69.
BRASIL. Ministério da Saúde. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes: um passo a mais na cidadania em saúde. 2a ed.rev. Brasília: Ministério da Saúde. 2002.
CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SOCIAL – 7a. REGIÃO. “O projeto de profissão e a prática na área de saúde”. In: Práxis. Informativo bimensal, ano II, n.7, p. 6-9, maio/2000.
CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SOCIAL – 7a. REGIÃO. “ECA – 10 anos. Uma legislação inovadora que esbarra em práticas conservadoras”. In: Práxis. Informativo bimensal, ano II, n.8, p. 5-7, julho/2000.
DESLANDES, S. F. “O atendimento às vítimas de violência na emergência: prevenção numa hora dessas?”. Revista Ciência e Saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO. V.1, n.1, p.81-94, 1999.
____________________Prevenir a violência. Um desafio para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 1997.
HONORATO, César. “Modernidade a Jeca Tatu: um ensaio de reflexão acerca das políticas sociais no Estado do Rio de Janeiro”. In: Em pauta. V.9, p. 139-151, 1996.
MENDES, Alessandra G. e MATOS, Maurílio C. “Uma agenda para os Conselhos Tutelares. Rio de Janeiro”. (mimeo). 2004.
Notas:
1 Assistentes sociais do Hospital Estadual Getúlio Vargas, atuando na enfermaria de Pediatria.
2 A equipe é composta de 21 assistentes sociais, sendo que: 9 atuam nas enfermarias, incluindo CTI e triagem na sala do Serviço Social; 8 atuam no setor de emergência durante o dia; e 4, no setor de emergência, durante a noite. Destes, 19 atuam em regime de plantão e 2 são diaristas, atuando nas enfermarias.
3 DESLANDES, Suely F. “Prevenir a violência. Um desafio para profissionais de saúde”. Rio de Janeiro:ENSP/Fiocruz, 1997.
4 BRASIL. Ministério da Saúde. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes: um passo a mais na cidadania em saúde. 2a ed.rev.
Brasília: Ministério da Saúde. 2002.
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